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Raquel Naveira

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Quanto trabalho contido numa pequena xícara de café: alguém plantou a semente, colheu, processou, torrou, moeu, preparou com água fervente essa bebida negra que reconforta e alegra.

O Brasil viveu o ciclo do café, período crucial para nossa história econômica, que se estendeu do século XIX até meados do século XX. Surgiram portos, ferrovias, cidades, na esteira da expansão da produção cafeeira. Mãos de escravizados e de imigrantes europeus encheram sacas e sacas de grãos. Toneladas exportadas para o mundo. A crise de 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, gerou a Grande Depressão, com desempregos em massa, falências, suicídios. Era o declínio de uma era. Mas, ainda hoje, a cafeicultura continua sendo uma atividade importante.

O poeta paulista, Cassiano Ricardo (1895-1974), escreveu o livro de poemas “Martim Cererê”, que traz a síntese da admirável étnica do povo brasileiro: “Homens filhos do sol (os índios)/ Homens filhos do mar (os lusos)/ Homens filhos da noite (os pretos)/ Aqui vieram sofrer, sonhar”. É um livro mágico, animado, primitivo, mitológico, folclórico, cheio de figuras como a Uiara, o Saci-Pererê ou “Cererê” ou “Matinta Pereira”, os Gigantes de Botas. Ao final, num canto de amor a São Paulo, escreve o poema “Café Expresso”, do qual transcrevo trecho:

Café expresso- está escrito na porta.
Entro com muita pressa. Meio tonto,
Por haver acordado tão cedo...
E pronto! Parece um brinquedo...
Cai o café na xícara pra gente
Maquinalmente.

E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente de São Paulo
Nesta pequena noite líquida e cheirosa
Que é a minha xícara de café.

Imaginei certa vez uma cena dramática que bem poderia ter acontecido de fato. Que nos derradeiros momentos de vida do grande escritor Machado de Assis (1839-1908), ele teria pedido uma xícara de café ao seu visitante, Astrogildo Pereira, que viria a se tornar notável crítico literário de sua obra. Euclides da Cunha contou no texto “A Última Visita”, que, na noite de 27 de setembro de 1908, ele, Coelho Neto, Raimundo Correia, Rodrigo Otávio, Graça Aranha e José Veríssimo estavam no casarão da Rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro, onde Machado de Assis estava moribundo. Ouviram-se pancadas na porta da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente de uns 16 ou 18 anos. Perguntaram-lhe o nome e ele declarou que ninguém ali o conhecia, nem mesmo o dono da casa, a não ser pela leitura dos livros que o encantavam. O jovem foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse palavra. Ajoelhou-se. Beijou a mão do mestre, aconchegou-se a seu peito. Levantou-se, sem dizer nada, saiu. Ao ler essa história, delirei. Talvez Machado de Assis pudesse ter dito a Astrogildo: “_Dê-me café. Quero escrever, até morrer”. E dessa frase, surgiu meu poema:

.Dê-me café,
Quero escrever.

.Uma xícara desse tônico
E terei forças renovadas,
Encontrarei a palavra perdida
Que caiu como folha
Da árvore da vida.

.Dê-me café,
Quero escrever.

.Sou aristocrata,
Poeta,
Basta o aroma
E cantarei a luta de amor e fé
Nesta página aberta.

.Dê-me café,
Quero escrever.

Estímulo para meu cérebro,
Investigarei pensamentos,
Sentimentos,
Decretos divinos
E registrarei tudo
Com dedos ágeis sobre as teclas.

Dê-me café,
Quero escrever.

Um pouco mais
Dessa infusão das Arábias
E não terei mais sono,
Revelarei segredos,
Juntarei letras em estranhas galáxias
E mergulharei num outro universo.

.Dê-me café,
Quero escrever
Até morrer.