Raquel Naveira
Fiquei a meditar muito tempo na muralha. A cabeça encostada nas pedras, na terra compactada, no calcário, nos fragmentos trazidos por tantas mãos, sedimentados com tanto sangue.
Que muralha seria essa? Uma cinta protetora, que me separa de todos aqueles que já partiram, que corta minha comunicação com os outros? Que, ao mesmo tempo, é minha segurança, minha prisão e tudo que me sufoca?
Caminho ao longo da muralha. Palavras de vida e morte me acompanham, acesas como tochas. Gemidos também. De repente, ouço o som de mísseis balísticos, bombardeios pesados, usinas subterrâneas que explodem sob o martelo da meia-noite. O mundo está tenso. Em algum hotel, há os que dançam, tocam piano e espiam atrás das cortinas. Os que jogam xadrez, enquanto decidem o dia do Juízo em seus computadores. Um domo de ferro me protege do ataque de um foguete. Estendo meu corpo, rente à muralha.
Se conseguir quebrar os medos, derrubarei minha Muralha da China. Estou pronta para a batalha, empunhando minha pena e espalhando meus escritos. Sigo por trechos íngremes, levantados por operários da dinastia Ming, no mesmo compasso dos mercadores da Rota da Seda, subindo até as torres de vigia, enviando sinais de fumaça e fogo, fincando bandeiras coloridas nas fissuras, galgando escadarias e rampas, abrindo portões de madeira com trancas de ferro. Sinto sobre minha pele os olhares dos inimigos, dos nômades violentos das estepes.
Queria enxergar além dessa muralha. Deve haver um vale. A confiança seria maior que o temor do abandono e da derrota. Como quebrar essa barreira? Gritando, clamando, tocando trombetas como fizeram os sacerdotes e o povo em volta das muralhas de Jericó? Não desanimando nunca? Isso seria possível?
Estou fora do meu lugar. Vejo ao longe a Serra do Mar, cadeia montanhosa. Muralha de rochas onde as ondas batem nas escarpas. Que extraordinário e épico o romance A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Um livro cheio de bravura, paixões, intrigas e ódios dos primeiros desbravadores do coração do Brasil. A paisagem, os costumes coloniais, as lutas dos homens na selva, o conflito com os indígenas emboabas, a busca do ouro. História da família do bandeirante Dom Braz Olinto, que residia no entorno da vila de São Paulo. O papel de liderança das mulheres em suas casas, quando os homens partiam nas suas aventuras.
A portuguesa Cristina veio do Reino para se casar com seu primo Tiago, pois havia escassez de mulheres brancas. Tiago gera em segredo um filho bastardo com Isabel, mulher forte, rude, hostil, que criava uma onça chamada Morena. Estão lançadas as sementes da dúvida, do adultério, das intrigas, da desintegração familiar. Margarida, a poetisa, desconfia que o pai da criança seja seu esposo Leonel, irmão de Tiago. Morre de febre e desgosto. Os emboabas atacam Lagoa Serena. Cristina resolve voltar para Portugal. Olha a enorme muralha encimada por nuvens gigantescas e coloridas. Fica assombrada com a presença esmagadora e indômita da serraria, daquela barreira que trancava o horizonte. Sua mão trêmula se elevou para a muralha. As nuvens não mostravam mais o mesmo contorno, e, no entanto, Cristina continuava possuída pela miragem. Sua frase final: “_ Com homens assim, loucos e teimosos, e mulheres tão atrevidas e obstinadas... sabes o que me veio à cabeça? Que esta sujeira...- e ela cuspiu de raiva, naquele desafio à grandeza de Deus, cativa de imensidão- bem pode tornar-se, um dia, uma grande cidade.” Que hino a São Paulo. A garoa e o frio percorrendo a espinha, o caminho da Serra do Mar.
Fiquei a meditar muito tempo na muralha. Queria derrubar todas as muralhas que impedem o amor, o perdão e a liberdade. Queria construir pontes. Só consigo, a passos lentos, manter um estranho autodomínio em meio às dificuldades, como se eu fosse uma muralha, às vezes de cristal, outras de aço.